Boa noite. Gostaria de agradecer ao Centro Acadêmico de Filosofia Professor João Cruz Costa, da Universidade de São Paulo, que possibilitou esta aula no estilo palestra. Agradeço aos colaboradores, editores, poetas, artistas e pensadores que fazem o jornal do CA desta faculdade, o Discurso Sem Método, que pode ser adquirido gratuitamente neste departamento. Agradeço também aos meus melhores amigos, além de meus colegas de filosofia e de jornalismo que estão nesta sala. Vou apresentar aqui a pesquisa de iniciação científica desenvolvida no Centro Interdisciplinar de Pesquisa, o CIP, da Faculdade Cásper Líbero, em minha primeira graduação no curso de jornalismo. A pesquisa foi desenvolvida ao longo do ano de 2008, mas nasceu de leituras do escritor franco-argelino Albert Camus que se iniciaram entre 2006 e 2007. Estou planejando que este projeto se torne, futuramente, uma pesquisa de mestrado.
Confira a apresentação de slides abaixo:
Confira a apresentação de slides abaixo:
Sou formado em jornalismo na Cásper Líbero, em 2010 e, atualmente, estou estudando filosofia nesta instituição. Esta aula estará disponível na íntegra no site www.albertcamus.com.br, acompanhada por uma bibliografia atualizada. No mesmo site, vocês podem conferir um artigo publicado na revista Anagrama, da ECA, que resume a minha iniciação científica. O nome do artigo é Jornalismo francês e Albert Camus.
Como comecei a pesquisa
Camus foi apresentado para mim através do livro O Estrangeiro, escrito em 1942, que trata sobre um protagonista chamado Mersault, que comete um crime cruel sem uma motivação aparente. Em sua narrativa seca e rica em imagens, Albert Camus me seduziu em sua narrativa. Seu tema principal nesta obra, e em muitos de seus livros, tanto os literários quanto os ensaísticos, é o absurdo, a completa desconexão do indivíduo com um passado e com um futuro. Camus trata sobre a absoluta liberdade, que ocorre com o deslocamento do sujeito da cultura histórica.
É com este livro que eu inicio a principal discussão desta palestra. Não vamos apenas falar sobre a importância literária de Camus, porque seus livros são clássicos reconhecidos nas livrarias e não são o tema principal do meu trabalho. Aqui nós iremos falar sobre imprensa e história, dois temas que estão diretamente relacionados com o conceito de absurdo.
Camus e o jornalismo
Albert Camus não era apenas escritor. Da pobreza de Argel e Mondovi, ele fez faculdade de Filosofia e conseguiu ter acesso ao mundo editorial. Com ajuda de editores como Gallimard, ele teve acesso ao círculo de intelectuais de Paris, um encontro de grupos que tinha o filósofo Jean-Paul Sartre e sua esposa Simone de Beauvoir como atores importantes e centrais em algumas correntes, como o existencialismo. Sartre foi um leitor, um admirador e um publicitário de O Estrangeiro na Europa. Ele, praticamente, tirou Camus do subdesenvolvimento da Argélia para lançá-lo como intelectual pied-noir no grande continente.
E quando Camus chegou em Paris, ele encontrou uma Europa prestes a mergulhar no Nazismo e na Segunda Guerra Mundial. Isso levou o escritor a se engajar na esquerda francesa e numa iniciativa que consumiria sua carreira tanto quanto sua trajetória intelectual: O jornalismo. Meu estudo foi um trabalho de tradução, exploração e interpretação dos artigos de Albert Camus na imprensa francesa. Utilizei um livro em inglês chamado Camus at Combat: Writing 1944-1947, editado por Jacqueline Lévi-Valensi e traduzido para o inglês por Arthur Goldhammer para a Princeton Univesity.
Veja 15 minutos da palestra na FFLCH-USP:
Veja 15 minutos da palestra na FFLCH-USP:
Jacqueline reuniu 165 editoriais e artigos que Camus escreveu em um jornal clandestino da Resistência Francesa chamado Combat. A publicação cobriu soldados franceses contra nazistas e até mesmo os conflitos entre os franceses, entre os socialistas e os defensores da República de Vichy, um governo que se entregou à Hitler acreditando que a Alemanha não destruiria a França se conquistasse novos aliados. Consultei também as versões em francês de alguns editoriais em Combat e estabeleci paralelos entre a literatura e o jornalismo de Camus.
Há um trecho de um editorial de julho de 1944, sem especificação de qual dia foi, explica melhor a profissão de Albert Camus na imprensa. O texto tem o título de A Profissão de Jornalista. Voi ler o texto:
“Jornalismo clandestino é honrável porque é uma prova de independência, porque envolve um risco. É bom, é saudável, tudo o que tem haver com os atuais eventos políticos têm se tornado perigoso. Se há algo que nós não queremos ver novamente, é a proteção da impunidade por trás de quem com um comportamento tão covarde e com muitas maquinações uma vez teve refúgio. (CAMUS ALBERT In: LEVI-VALENSI, Jacqueline. Camus at Combat: Writing 1944-1947. 2006. p. 9)”
O jornalismo europeu
Levando em consideração como Camus conceituou o jornalismo de seu tempo, eu passei a pesquisar não apenas sua literatura ou seus artigos em Combat, mas sim as peculiaridades do jornalismo europeu e francês. O acadêmico Érik Neveu descreveu as peculiaridades do jornalismo do Velho Continente bem afastado do formato consagrado pelo hard news norte-americano e o new journalism de autores como Tom Wolfe. Neveu descreve a imprensa europeia como genuinamente literária, e não meramente adaptando uma linguagem descritiva, repleta de figuras linguísticas e de recursos de clássicos em seus textos de cotidiano, ou mesmo no perfil de grandes artistas, da mesma forma que Frank Sinatra foi descrito no livro Fama e Anonimato, de Gay Talese.
Diz Érik Neveu: “A competência dos jornalistas é literária, feita no talento polêmico, de pirotecnia retórica . Múltiplas premissas manifestam essa inclinação literária do jornalismo francês. As publicações que fazem decolar uma imprensa de massa (La Presse, de Giradin, em 1839; Le Petit Journal, de Millaud, em 1863) se utilizam de um produto de apelo que é o folhetim redigido por célebres penas (Balzac, Dumas, Hugo, Sue). De Zola a Camus, essa tradição de cooperação tornou-se um traço do jornalismo francês, cujos monstros sagrados (Londres, Bodard) associam a figura do escritor à do repórter. (NEVEU, Érik. In: Sociologia do Jornalismo. 2006. pág. 28)”.
Honoré de Balzac foi um profundo cronista do cotidiano. Em sua coletânea de livros da chamada Comédia Humana, que não foi completa em vida, narram os diferentes aspectos da vida francesa e parisiense. Na obra O Pai Goriot, dentro da comédia, ele centra narrativa de forma fragmentada em três personagens que mostram facetas completamente distintas da sociedade: o Le Père Goriot, o pai Goriot, um burguês idoso e benevolente; o criminoso Vautrin e o ingênuo estudante Eugène de Rastignac.
O Combat de Camus não é igual a essas publicações mais clássicas ou mesmo à literatura realista, ou de comédia, de Balzac. Sua escrita é mais urgente, menos caprichosa, mas igualmente recheada de um conteúdo histórico e cultural que é o recheio da arte francesa. Albert Camus não poupa referências literárias, paralelos com o marxismo e um engajamento explícito e honesto com os leitores de sua época.
Diz Neveu, citando outro autor Édouard Secrétan, correspondente do La Gazette de Lausanne, em 1902: “Os jornais alemães, ingleses, belgas, italianos, suíços são informativos e instrutivos, mas geralmente mal escritos e tediosos. O jornal de Paris não informa nada, ou explica de forma incompleta, mas é interessante mesmo assim, porque seus jornalistas são os primeiros do mundo na habilidade da escrita e na arte de manejar um artigo. Do correspondente do La Gazette de Lausanne, Édouard Secrétan, em 1902. (NEVEU, Érik. In: Sociologia do Jornalismo. 2006. pág. 27)”.
Mesmo com as críticas ao formato europeu e francês, o próprio livro Cartas a um Amigo Alemão, escrito por Camus após a Segunda Guerra, é um exemplo de como sua passagem pela imprensa influenciou sua literatura. O livro tem apenas uma tradução para o português de Portugal, mas trata sobre o mal que o nazismo fez especificamente para a França, simulando uma correspondência entre um francês e um alemão, na época.
Contexto mundial
Por essa diferenciação, de um jornalismo francês clássico para um jornalismo de esquerda em plena Segunda Guerra Mundial, eu pesquisei um conhecimento de antropologia para embasar minhas análises, saindo um pouco da crítica literária, da análise de imprensa ou até mesmo de uma reflexão filosófica sobre o tema.
Recorri então ao Cultural Studies de Birmingham, uma cidade inglesa tem uma origem fortemente operária no interior do século 20. Esse grupo de estudos surgiu em 1964, com uma metodologia interdisciplinar para explorar os fundamentos da humanidade em seu dia a dia. Este tipo de estudo de antropologia, embora utilizado para alguns pesquisadores sobretudo do meio acadêmico, é muito criticado por abarcar um leque de teorias, métodos e práticas que não se retringem um critério claro e resumido. A interdisciplinaridade dos campos de estudo passa uma noção errada sobre este segmento acadêmico.
Mesmo com essas dificuldades e críticas constatadas na leitura, decidi incluir as teses de um dos integrantes do Cultural Studies. Seu nome é Stuart Hall e ele é um negro jamaicano que substituiu Richard Hoggart como presidente do departamento de pesquisa. Foi um dos fundadores do Cultural Studies, junto com Raymond Williams. Suas referências são Karl Marx, o italiano Antonio Gramsci e Michel Foucault.
Seu foco de estudo é o indivíduo pós-moderno e contemporâneo que foi construído a partir do fim da Segunda Guerra Mundial e com a queda das bombas atômicas em Hiroshima e Nagasaki. Hall defende uma crise de referenciais deste indivíduo na história e sua desintegração como indivíduo em um novo mundo, que começou a se polarizar em sistemas econômicos distintos, capitalismo e socialismo, gerando um terceiro bloco de pobreza, chamado anos atrás de Terceiro Mundo.
Diz Hall, em um de seus livros: “Sempre houve uma tensão entre essas identificações e identificações mais universalistas – por exemplo, uma identificação maior com a “humanidade” do que com a “inglesidade” (englishness)”. (HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 2002. Pág. 76)”.
Hall critica uma regionalidade que se perdeu, justamente, quando a imagem se tornou global, quando a cultura rompeu fronteiras, após duas grandes guerras, e se fragmentou seja propagando a ideologia dominante ou mesmo produzindo produtos híbridos territoriais. Albert Camus vive justamente neste período de transição, no ceio da Segunda Grande Guerra, e tem uma consciência do Terceiro Mundo que era a Argélia.
Um dos críticos de Stuart Hall é o professor Clóvis Marcondes Filho, da USP, que chegou a ministrar aulas na Faculdade Cásper Líbero antes que eu entrasse na instituição, em 2007. Diz Clóvis na Communicare, uma revista acadêmica de comunicação na Cásper: “Stuart Hall é um intelectual e ao mesmo tempo um ativista político que emergiu de forma espantosa nas últimas décadas, especialmente nos Estados Unidos, onde se tornou uma espécie de moda intelectual, em contraposição à lingüística oficial e às suas tendências monopolistas e dominadoras, como veremos adiante, mas, também, contra a “novíssima esquerda” do campo dito “pós-moderno”, não poupando a nenhum de seus representantes, se bem que aproveitando parte de suas contribuições. É, talvez, no quadro atual, o único nome de relevância no pensamento de esquerda que ainda mantém prestígio e ressonância dentro desse espectro político e intelectual (MARCONDES F., Ciro. Stuart Hall, cultural studies e a nostalgia da dominação hegemônica. In: Communicare volume 8 nº1. 2008. p.28)”.
Continua Clóvis: “Isso se deve, possivelmente, ao fato de Hall ser um homem aberto às novidades, ser ilimitado, sempre buscando se renovar e aceitar novas influências que somem com o seu trabalho. Ele tem uma visão de cultura como processo, como produção, como espaço altamente vivo e criativo, dotado de grandes capacidades de resistir e de reagir às imposições deformantes, especialmente da cultura de massas. Hall utiliza-se do mesmo raciocínio “flexível” para falar de metáforas. Gramsci dizia que se deveria sair da guerra de manobras para se ingressar na guerra de posições. Era a metáfora da luta política de sua época. Hall a reatualiza para a necessidade atual de se adaptar às circunstâncias. Diz que não opera simplesmente a substituição de uma metáfora por outra, mas “se é surpreendido no meridiano que divide as duas variantes da mesma idéia” e fica-se suspenso entre ambas, abandonando-se uma, sem contudo, transcendê-la, movendo-se para outra, sem englobá-la inteiramente. (MARCONDES F., Ciro. Stuart Hall, cultural studies e a nostalgia da dominação hegemônica. In: Communicare volume 8 nº1. 2008. p.28 e p.30)”.
É possível criticar Clóvis se você lembrar que existem outros teóricos da esquerda importantes hoje nos Estados Unidos, além de Hall, como Noam Chomsky. Mas Chomsky é influente, na verdade, na linguística, ao defender uma teoria universal de linguagem, além de possuir inúmeros argumentos na política com seu anarquismo, que espanta a direita e os socialistas mais tradicionais.
Com outras constatações, muito distantes de Chomsky, Hall vai contra uma tendência estática e confortadora das representações humanas na sociedade, é um defensor do fluxo da cultura, do processo e do maleável. Ele é comparável a Camus e à sua realidade em muitos aspectos.
Camus no Combat
O jornalismo de Albert Camus segue este fluxo. É de esquerda, mas com cultura francesa. Possui uma economia de literatura, de termos e de reflexão de elite, mas não é elitista. É engajado, mas com repórteres envolvidos no front e dando notícias do dia a dia, como qualquer redação regular. É enviesado, mas próximo de uma imparcialidade. Combat e Camus são inspirações para o jornalismo, uma aplicação de uma discussão moral que Camus instaurou logo em seus primeiros escritos de literatura. Ao apresentar personagens absurdos, criticar o marxismo e a história, Albert Camus não estava endossando a loucura, mas sim defendendo a consciência como um pensamento contra o absurdo.
Como o sol, o absurdo deve ser constatado. Ao invés de falecer diante de seu calor, devemos lutar contra ele, como na Argélia em que Camus viveu.
Um escritor e historiador chamado Michel Winock explicou, especificamente, o que significou Combat e porque aquele jornal é importante. E este trecho parece resumir o que eu considerei fundamental em meu levantamento científico. Diz Winock: “Combat sobressai de imediato em toda essa imprensa. Pia (diretor) e Camus (redator-chefe) conseguem torná-lo, conforme pretendem, um jornal independente, nem partidário nem estipendiário, nem “popular”, nem oficial. Naquele momento, uma das principais contribuições de Camus terá sido sua exigência de um jornalismo de alto gabarito, fundado em uma deontologia – “um país vale, muito frequentemente, o que vale sua imprensa”. (WINOCK, Michel. O Século dos Intelectuais. 2000. cap.43 “As lutas de Camus”)”.
Como redator-chefe, como editor, Camus estava diretamente relacionado com a opinião da publicação. Mas podemos visualizar, ao ler seus manuscritos e algumas traduções que fiz, que o intelectual franco-argelino também procura refletir no seu texto o trabalho dos repórteres. Além de uma reflexão sobre o que é imprensa. “A diplomacia americana hoje se encontra em uma situação paradoxal. Carregam uma guerra contra o fascismo enquanto mantém relações oficiais com uma das maiores regimes ditatoriais e se recusando a reconhecer um governo nascido do embate contra o opressor hitlerista.(CAMUS, Albert. In: LEVI-VALENSI, Jacqueline. Camus at Combat: Writing 1944-1947. 2006. p. 72)”, diz Camus, ao se referir às relações paradoxais que os Estados Unidos mantiveram com o governo de Francisco Franco, com o franquismo retratado por Pablo Picasso em Guernica, com um governo sanguinário, tão nefasto para outras nações quanto Hitler.
E diz Camus, sem fazer referências aos artigos de Combat sobre a ditadura espanhola, ou aos textos do jornal clandestino francês com a queda das bombas no Japão, mas falando sobre os jornalistas: “O que nós queremos? Uma imprensa que seja clara e viril e escreva em um estilo decente. Quando nós sabemos, como nós jornalistas temos conhecimento nesses últimos quatro anos, que escrevendo um artigo pode trazer você até a prisão ou te matar, fica claro que as palavras tem valor e devem ser mensuradas cuidadosamente. O que nós estamos esperando é restaurar a responsabilidade jornalística com o público”.
A pesquisa nasceu de uma leitura dos livros de ficção camuseanos em 2006. Cresceu com mais livros para uma proposta de iniciação científica em 2007. Foi pesquisado e transformado em monografia em 2008, orientado pela professora doutora Dulcília Buitoni, uma das primeiras mulheres a editar revistas na Abril e uma talentosa estudiosa sobre as relações entre literatura e jornalismo. Em 2009, foi apresentado na Cásper Líbero no primeiro semestre, levado para o congresso Intercom no mesmo ano e depois apresentado no CIC FAI, um congresso de iniciação científica, na cidade de Adamantina, no interior paulista.
Camus é filósofo?
Falei bastante sobre jornalismo, literatura, antropologia, sociologia, Cultural Studies e sobre cerca de 20 livros escritos por Camus ou sobre Camus. Resta falar, afinal, da relação de Albert Camus com a filosofia, já que ele é erroneamente taxado de existencialista por ter sido um grande amigo de Jean-Paul Sartre.
A verdade é que Camus sequer se nomeava como um filósofo, pois ele recusava o título. O pensador Michel Onfray, que foi divulgado na revista CULT do ano passado, defende que Albert Camus é um herdeiro de Nietzsche no ceticismo e na autocrítica, enquanto segue como extensão de Foucault na crítica formal. Camus se formaria, justamente, como um contraponto à angústia ateia de Sartre, um herdeiro natural de Kierkegaard, que eu pude ler um pouco durante a pesquisa.
Camus seria, assim, um filósofo do absurdo. Um pensador sobre o ser humano livre, mas mortal em sua essência, seja no Mersault que mata um árabe a tiros sem motivos, ou no Homem Revoltado (1951) que mostra o messianismo e as doutrinas problemáticas do comunismo, um motivo forte de rompimento com Sartre e com boa parte da esquerda. Este rompimento, aliás, levaria alguns escritores contemporâneos, inclusive brasileiros, a afirmarem que Camus seria um autor de direita. Conforme tudo o que exploramos nesta palestra, isso é um evidente erro, um equívoco, já que a crítica da esquerda surgiu no nascimento da própria literatura camuseana e nunca se tornou uma defesa contudente do capitalismo. Camus apenas não defende formas mais ideais de socialismo, mas sempre é favorável a iniciativas socializantes.
Um dos motivos de Camus não acreditar que é um filósofo é sua própria crítica à filosofia. Durante a pesquisa, pude entrevistar o pesquisador, acadêmico, jornalista e um dos homens que foi curador do Festival de Literatura em Paraty, a FLIP, Manuel da Costa Pinto. Manuel lançou um livro chamado Albert Camus, um elogio do ensaio, onde ele aborda a constituição do ensaio filosófico e sua tradição em autores como Montaigne, Pascal e La Rochefoucaud. Camus estaria nesta tradição e não em Nietzsche, segundo Manuel, no que ele definiu para mim como crítica “solar”, já que Camus utiliza o símbolo do Sol como o do próprio absurdo, e em um texto curto e árido.
Diz Camus, em uma epígrafe logo na abertura de Manuel: “Os filósofos antigos refletiam muito mais do que liam. Por isso se ligavam tão estreitamente ao concreto. A tipografia mudou isso. Nós lemos muito mais do que refletimos. Não temos filosofias, apenas comentários. Há nessa atitude tanto de modéstia quanto de impotência”.
Para Manuel, foi fundamental a leitura de Horacio González, ensaísta argentino que, segundo o próprio Manuel, é outro nome que pesquisa Albert Camus e ensaios na América Latina. González foi a principal referência que Manuel me apresentou, principalmente como uma fonte de pesquisas sobre Camus em nosso continente.
Ainda sobre filosofia, Camus toma outro posicionamento, grifado por seu biógrafo Oliver Todd. Diz o biógrafo, não Camus em si, mas citando várias de suas entrevistas: “Filósofo, Camus? Não, se os parâmetros – ocidentais – forem Platão, Kant, Hegel, Russel, Wittgenstein, Popper, Sartre... Camus repetiu que não era filósofo, e sobretudo que não era um existencialista, mas, vítima de uma coqueteria cultural francesa, não insistiu muito. Em Estocolmo, nas conversas na embaixada, ele o lamentou. Sabia que Sartre era mais “brilhante”. Mesmo examinando-o com critérios da tradição francesa, poderíamos dizer que Camus contribuiu para avanços filosóficos, a não ser opondo-se ao sistema – o que não é pouca coisa? Algumas frases de Camus continuam toques címbalos mais literários do que filosóficos: “Chamo de verdade a tudo o que continua”. O fato de não se impor como filósofo não o impediu de ser um pensador com envergadura estimulante. Pelo contrário! Algumas de suas idéias de filosofia política são mais aceitáveis nesse final de século 20 do que ideologias que sucumbiram com o desmoronamento do mundo comunista. (TODD, Olivier. Albert Camus: Uma vida. 1998.)”.
Engajamento e paixões no jornalismo
Considerando o que Todd alega sobre a intelectualidade peculiar de Albert Camus, a lição final que eu gostaria de deixar nesta breve palestra é que ele foi, acima de tudo, um intelectual que lutou por uma experiência moral válida, que discute a ética no concreto e no limite, fazendo jornalismo de guerra e colocando que uma imprensa engajada, e nem sempre comercial, é muito mais comprometida com seus trabalhos. Aliás, é de se pensar que Camus contribuiu muito mais para a filosofia moral não seguindo Sartre de forma cega e adotando uma postura mais ensaística e concreta, como os ensaístas de tradição francesa ou mesmo como Nietzsche fez em sua filosofia ateia e profundamente crítica. Uma reflexão que fica, para jornalistas e filósofos interessados nesta palestra, não é a defesa de um jornalismo estruturado de forma imutável ou mesmo uma ontologia, uma filosofia autodeclaratória.
Este debate sobre Camus na imprensa mostra, na verdade, que ele criou filosofias e literaturas meramente exercendo sua ética no jornalismo. E que não precisamos pensar em nós mesmos como grandes pensadores do mundo ocidental, mas apenas trabalhar na transmissão de ideias coerentes. O engajamento de Camus, acima da própria esquerda francesa, defendia uma coerência interna que transborda em tudo o que ele escreveu em vida. O Mito de Sísifo, um de seus maiores ensaios, mostra que o mito grego de Sísifo é a personificação do absurdo. O personagem mitológico foi amaldiçoado a carregar uma pedra até o pico de uma montanha e deixá-la cair, para repetir todo o processo. A vida é essa incoerência, essa pobreza e essa miserabilidade, mas Camus pensou, assim como os Argelinos que lutaram pela independência, que Sísifo deve ser feliz. Constatar o absurdo, mesmo que seja inevitável, é lutar contra ele. E essa luta deve resultar numa morte feliz.
O editor do jornal O Estado de S. Paulo e da Folha de S. Paulo na época da ditadura militar, Cláudio Abramo, teve o privilégio de conversar com Albert Camus em 1949, quando ele já tinha deixado os editoriais do Combat e estava visitando o Brasil, uma terra tão mergulhada no subdesenvolvimento quanto outras. E ele disse uma coisa importante sobre as ideias, que se desenvolveram inclusive quando ele esteve na imprensa: “A propaganda, as ideologias tornaram abstratas as relações humanas. Cabe-nos individualmente torná-las novamente concretas. Antes de mais nada resistindo às forças de abstração e morte. Em seguida, estabelecer, acima das fronteiras e dentro de nós mesmos, uma corrente de calor e solidariedade. Pugno pela paixão, não pela ciência, em tudo o que é humano”.
Camus, que era goleiro e jogava futebol, conseguiu ser um filósofo, um literato e um pensador mesmo militando pela imprensa escrita, descrita como superficial e grosseira. Não admitia que era pensador, mas tinha considerações importantes sobre a filosofia de sua época e que funcionam até para as pesquisas ontológicas de hoje. Eu destaco uma aspa de seus Carnets, o II, separada pelo pesquisador Manuel da Costa Pinto. O texto abre seu livro Albert Camus: Um elogio ao ensaio:
“Os filósofos antigos refletiam muito mais do que liam. Por isso se ligavam tão estreitamente ao concreto. A tipografia mudou isso. Nós lemos mais do que refletimos. Não temos filosofias, apenas comentários. Há nessa atitude tanto de modéstia quanto de impotência. E um pensador que começasse seu livro com essas palavras: ‘Tomemos as coisas em seu princípio’ estaria se expondo a sorrisos. A tal ponto que um livro de filosofia que surgisse hoje sem se apoiar em alguma autoridade, citação, comentário, etc. não seria levado a sério”.
Talvez devêssemos apelar ao ensaio, um método fechado em si, ou às filosofia mais ousadas para escapar de um pensamento fruto de comentadores de filósofos. Talvez devêssemos investir em jornalismo engajado, mesmo dentro do capitalismo, para oferecer uma visão mais rica dos acontecimentos cotidianos, assumindo nossos lados nas disputas sociais, mas sem cair em teses que extrapolam a realidade. É por esse motivo que pretendo continuar essa minha investigação, que começou com o Combat entre 1944 e 1947, para também investigar os artigos de editorialista de Camus no l’Express, publicação concorrente do Le Monde, entre 1955 e 1956.
Também aproveito para recomendar uma coluna de Jack Shafer à agência de notícias Reuters. No texto, ele acredita que o jornalismo crítico de Albert Camus está vivo na opinião diversificada da internet. Embora muitos possam não concordar 100%, é uma maneira de passar a mensagem de engajamento e intelectualidade do jornalismo de Camus para as gerações atuais. O link estará na bibliografia desta aula.
Gostaria que nesta palestra ficasse claro que, muitas vezes, o jornalismo é um caminho válido para que você experimente, genuinamente e contra a maioria das expectativas médias, uma experiência intelectual genuína, como fez Camus e muitos profissionais de mídia durante a Segunda Guerra Mundial. Sofrendo pressões de todo tipo das forças militares no front de batalha.
Referências
Livros:
ARISTÓTELES. A Ética de Nicômaco. São Paulo, 2000.
BARROS FILHO, Clóvis de. Ética na Comunicação. Summus
Editorial. São Paulo, 2003.
BARTHES, Roland. Inéditos – Volume 4: Política. Editora
Martins Fontes. São Paulo, 2005.
BELTRÃO, Luís. Jornalismo Opinativo. Editora Sulina.
Porto Alegre, 1980.
BUCCI, Eugênio. Sobre Ética e Imprensa. Companhia das
Letras. São Paulo, 2008.
CAMUS, Albert. A Inteligência e o Cadafalso e outros
ensaios. Editora Record, 2002.
CAMUS, Albert. A Morte Feliz. Editora Record. Rio de
Janeiro – São Paulo, 2005.
CAMUS, Albert. A Peste. Editora Record. Rio de Janeiro –
São Paulo, 2006.
CAMUS, Albert. A Queda. Editora Record. Rio de Janeiro –
São Paulo, 2006.
CAMUS, Albert. O Avesso e o Direito. Editora Record. Rio
de Janeiro – São Paulo, 2003.
CAMUS, Albert. O Estrangeiro. Editora Record. Rio de
Janeiro – São Paulo, 2005.
CAMUS, Albert. O Exílio e o Reino. Editora Record. Rio de
Janeiro – São Paulo, 1997.
CAMUS, Albert. O Homem Revoltado. Editora Record. Rio de
Janeiro – São Paulo, 2005.
CAMUS, Albert. O Mito de Sísifo. Editora Record. Rio de
Janeiro – São Paulo, 2006.
CAMUS, Albert. O Primeiro Homem. Editora Nova Fronteira.
Rio de Janeiro, 2005.
CAMUS, Albert. Calígula: peça em quatro atos. Civilização
Brasileira. Rio de Janeiro, 1963.
CAMUS,
Albert. Calígula. Éditions Gallimard. Folio Théâtre. França, 2008.
CAMUS, Albert. Cartas a um Amigo Alemão. Editora Livros
do Brasil. Lisboa, 2003.
CAMUS, Albert. Diário de Viagem. Editora Record. Rio de
Janeiro – São Paulo, 2004.
CAMUS, Albert. Estado de Sítio. Civilização Brasileira.
Rio de Janeiro, 2002.
CASTRO, Gustavo de e GALENO, Alex (org.). Jornalismo e
Literatura. Editora Escrituras. Coleção Ensaios Transversais, 2002.
COSTA P., Manuel. Albert Camus: Um Elogio ao Ensaio.
Ateliê Editorial. São Paulo, 1999.
FERREIRA, Carlos Rogé. Literatura e Jornalismo, Práticas
Políticas. EDUSP. São Paulo, 2004.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade.
DP&A Editora. São Paulo, 2004.
LEVI-VALENSI,
Jacqueline (ed.). Camus at Combat: Writing 1944-47. Princetown
University. Nova Jersey, 2002.
NUNES, Aparecida Maria. Clarice Lispector Jornalista.
Editora SENAC. São Paulo, 2006.
TODD, Oliver. Albert Camus: Uma vida. Editora Record. Rio
de Janeiro – São Paulo, 1998.
WINOCK, Michel. O Século dos Intelectuais. Editora
Bertrand Brasil. Rio de Janeiro – São Paulo, 2000.
Artigos em jornais:
RENTERGHEM, Marion Van. A Filha do Estrangeiro. O Estado
de S.Paulo. Caderno mais! São Paulo, 9 de setembro de 2007.
Artigos em revistas:
BARBOSA, João Alexandre. O ensaísmo enviesado de Albert
Camus. Revista Cult. São Paulo, agosto de 1998.
COSTA P., Manuel. Inimigo de si mesmo. Revista Entre
Livros. São Paulo, junho de 2007.
COSTA P., Manuel. O exilado. Revista Cult. São Paulo,
agosto de 1998.
COSTA P., Manuel. O mediterrâneo é aqui. Revista Entre
Livros. São Paulo, junho de 2007.
COSTA P., Manuel. Uma terra sempre estranha. Revista
Entre Livros. São Paulo, junho de 2007.
GUTIÉRREZ, Jorge Luís. A Revolta do Homem Absurdo.
Revista Filosofia, Ciência e Vida. São Paulo, abril de 2008.
LIUDVIK, Caio. Camus e Sartre, amizade e conflito.
Revista Entre Livros. São Paulo, junho de 2007.
Revista Cult: Camus é filósofo? “Nietzsche agiu como um álcool
forte sobre Camus” - http://revistacult.uol.com.br/home/2012/10/%E2%80%9Cnietzsche-agiu-como-um-alcool-forte-sobre-camus%E2%80%9D/
Sites da internet:
Artigo de Albert Camus na Wikipédia, a enciclopédia
on-line.
Disponível em português em:
http://pt.wikipedia.org/wiki/Albert_Camus
Disponível em inglês em:
http://en.wikipedia.org/wiki/Albert_Camus
Disponível em francês em: http://fr.wikipedia.org/wiki/Albert_Camus
Acessados em: 20 de dezembro de 2007.
RENTERGHEM, Marion Van. Catherine Camus Profession: fille
d´Albert, Artigo do no LeMonde.fr, do dia 29 de agosto de 2007. Disponível em:
Acessado em: 22 de outubro de 2007.
CAMUS, Albert. Editorial de Combat, 8 août 1945, jornal
Combat. Disponível em: http://www.matisse.lettres.free.fr/artdeblamer/tcombat.htm
Acessado em: 12 de novembro de 2008.
Manifesto inédito de Camus descoberto em 2012, envolvendo
a imprensa: http://www.albertcamus.com.br/2012/04/manifesto-sobre-liberdade-de-imprensa.html
Acessado em: 8 de junho de 2013.
Artigo de Jack Shafer, na Reuters, sobre Camus: http://blogs.reuters.com/jackshafer/tag/albert-camus/
Acessado em 8 de julho de 2013.